
Fernando Ressetti Pinheiro Marques Vianna¹
Nos últimos dias, a avatarização por meio da rede social Facebook tomou conta das relações sociais digitalizadas, e ampliadas, na pandemia. Mas o que, exatamente, leva-nos a criar um avatar e passar a se identificar por meio desse avatar, para o desempenho de uma série de ações, como cumprimentar alguém, expressar um sentimento, e outras? Seria o simples fato de sermos orientados a não cumprimentar fisicamente outras pessoas, e então desejarmos fazê-lo por meio de um avatar? Acredito que não. E aqui tenho, no mínimo, três ideias que tangenciam esta “brincadeira”, e que não são excludentes entre elas. A primeira ideia seria a ideia que nos aproximaria de Hanna Arendt, em A Condição Humana (2007[i]) e Shoshana Zuboff. A primeira menciona a capacidade técnica do ser humano como uma justificativa, mesmo que inconscientemente, de “largarmos mão” da Terra, afinal, hoje temos Elon Musks oferecendo viagens para fora da Terra. E a segunda autora afirma que qualquer forma de digitalização da face ou do indivíduo acaba servindo como uma forma de dataficação dos indivíduos, aumentando de maneira exponencial o poder e a riqueza da organização que o faz, nesse caso, o Facebook e seus parceiros. Dessa forma, podemos afirmar que o fato de termos um avatar, nos gera um desprendimento de nossos próprios corpos, e dos corpos dos outros. Ou seja, não permanece a preocupação com o bem estar, com o conhecimento, com a crítica, mas apenas a manutenção do meu avatar, que representa um ideal daquilo que sou levado a desejar de mim mesmo, com base nas definições do próprio Facebook e de uma sociedade digitalizada. Isso acontece, por não ser o usuário quem define suas características, mas elas são definidas dentro de uma oferta gerida por uma organização do chamado capitalismo de vigilância. Com isso, somos definidos pelo Facebook, para agirmos dentro do próprio Facebook, sob um véu que nos faz acreditar que tudo aquilo que ali faço, pertence a mim, quando, de fato, nem mesmo eu pertenço a mim mesmo nesse espaço digitalizado.
A segunda ideia sobre essa brincadeira está relacionada a uma incapacidade que temos hoje em lidar com o mundo que formatamos, e somos encorajadxs a não lidar conosco e com os problemas que geramos. Por isso, x avatar é perfeitx, e nos mais variados aspectos. Aqui enumero alguns: X avatar não precisa se preocupar com alimentação, então acabamos não refletindo sobre aquilo que consumimos, se está ou não completamente preenchido por agrotóxicos ou se advém de uma organização que explora tudo o que pode ao longo de toda a cadeia produtiva, desde a utilização de trabalho infantil análogo à escravidão em plantações, até a subremuneração nos serviços de entrega; x avatar não precisa se preocupar com o meio ambiente, afinal, podemos ser quem quisermos e estarmos onde quisermos com nossos avatares, sem sentir o calor recorde nas cidades do mundo e a destruição da fauna e da flora pelo capitalismo “pop”; e, por fim, x avatar não pensa sobre o fato de ter seus direitos expropriados sistematicamente ao longo dos últimos anos, pois enquanto o indivíduo de carne e osso se preocupa em sobreviver, e essa é a palavra do momento na pandemia do necrocapitalismo, o avatar tudo curte, tudo consome e tudo pode. Essa segunda ideia está relacionada a uma alienação voluntária, que é ampliada a cada like pelas redes sociais. Utilizando as palavras de Bruno Latour (2020[ii]), vivemos uma perda de orientação comum. E as redes sociais são parte fundamental dessa perda de orientação, haja vista a decisão de passarmos horas formatando avatares para o Facebook, trabalhando gratuitamente para uma organização das mais ricas, ao passo que optamos por tapar olhos e ouvidos para o fim do mundo como conhecemos.
E a terceira ideia sobre essa brincadeira afasta, justamente, a ideia de que uma ação promovida por uma organização capitalista praticante de ações reprováveis, condenáveis e já condenadas, o Facebook, seria uma brincadeira (aqui, sugiro pesquisar no parceiro do Facebook, o Google, as ações ao redor do mundo que condenaram o Facebook, assim como sugiro a leitura de uma série de livros sobre o tema e assistir filmes como “Privacidade Hackeada”[iii] e o “Dilema das Redes”[iv]). Sempre gosto de fazer a seguinte analogia: Se eu, vivendo em uma sociedade de consumo, em uma sociedade que prioriza o poder e o dinheiro em detrimento da vida, como ficou evidente na pandemia, fosse proprietário da empresa mencionada, inescrupulosa, e que detém todos os dados de mais de 3 bilhões de pessoas no mundo, iria criar uma brincadeira para agradar os usuários? Não mesmo! Precisamos lembrar que todo passo dado e toda decisão gerencial das organizações que compõem o chamado “capitalismo de vigilância”[v] são calculados, inclusive por meio da chamada dataficação[vi]. Essa dataficação consiste em quantificar as ações dos usuários, como reações, emoções, expressões, e etc, para garantir o engajamento e a adesão dos indivíduos a determinadas campanhas ou consumos.
Com base nessas três ideias sobre a avatarização que vem consumindo as redes sociais, é preciso, ainda, lembrar de algumas outras ações das organizações que compõem o capitalismo de vigilância, especialmente Facebook, Google, Amazon, Microsoft, IBM e outras organizações que são direcionadas à expropriação dos dados dos indivíduos, sejam idosos, crianças, homens, mulheres, etc. O inocente jogo Pokemon Go, criado por uma organização criada a partir da Google, segundo Shoshana Zuboff, já nos mostrou que as câmeras dos dispositivos móveis eram utilizadas para mapear locais, residências e estabelecimentos comerciais que não haviam sido acessados pelos veículos da Google, inclusive quantificando as crianças e jovens que frequentavam tais lugares. Posteriormente, a monetização e a manipulação dos jovens é o produto alcançado. Além disso, a mesma autora menciona documentos do Facebook, em que a organização afirma ter milhões de dados de expressão facial de indivíduos da Austrália e da Nova Zelândia, que podem auxiliar na identificação e reconhecimento facial dos indivíduos com o objetivo de descobrir o humor, se a pessoa está feliz, deprimida, triste, entre outras. E todas essas formas de dados auxiliam estas organizações a gerar gatilhos de consumo, tanto de produtos, quanto de serviços e, pasmem, de agentes políticos e ações políticas. Cathy O’Neil (2016[vii]) menciona, ainda, as decisões algorítimicas definidas, por exemplo, pela Google, que fazem com que as buscas sejam direcionadas, por exemplo, para um maior consumo de pessoas com características de Transtorno Obsessivo Compulsivo ou para consumos de crédito por pessoas que apresentam perfil para isso, mas não precisariam do crédito.
Isso significa que todos os indivíduos, independentemente de faixa etária, condição econômica, característica social ou racial, que consomem redes sociais, são afetadas por elas, inclusive nas suas decisões mais íntimas, como uma compra de um filme ou na decisão por um agente político ou uma agente política. E esse sistema, que hoje controla nossas vidas, se aproveita das brincadeiras que oferece, seja ela uma brincadeira de envelhecimento de foto, seja ela uma avatarização, de forma unilateral. É preciso começarmos a levar a sério aquilo com o que estamos consentindo, sejam Termos de plataformas digitais, sejam queimadas criminosas, seja o ceifamento de direitos, seja a banalização da morte dos pares, mesmo que não sejamos coveiros. A relação entre o consumo mídias e redes sociais em um mundo completamente plataformizado, e a passividade da sociedade diante do descaso frente pandemias e a aniquilação da própria espécie humana, não deveria ser ignorada, mas investigada. Enquanto pensarmos que uma rede social ou uma plataforma de streaming “salva minha vida”, seremos incapazes de refletir sobre o que, realmente, é importante para nossas vidas.
Referências:
[i] ARENDT, H. A condição humana. Forense universitária, 2007.
[ii] LATOUR, B. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Bazar do Tempo: Rio de Janeiro, 2020.
[iii] AMER, K.; NOUJAIM, J. Privacidade Hackeada. [Vídeo]. Estados Unidos: Netflix, 2019.
[iv] ORLOWSKI. J. The Social Dilemma. [Vídeo]. Netflix, 2020.
[v] ZUBOFF, S. The Age of Surveillance Capitalism:The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power:Barack Obama’s Books of 2019. Profile Books, 2019.
[vi] COULDRY, N.; MEJIAS, U. A. The costs of connection: How data is colonizing human life and appropriating it for capitalism. Stanford University Press, 2019.
[vii] O’NEIL, C.Weapons of math destruction: How big data increases inequality and threatens democracy. Broadway Books, 2016.
¹Doutorando em Administração pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Mestre em Administração pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
Como citar:
VIANNA, Fernando Ressetti Pinheiro Marques. O que significa um avatar do Facebook na era pandêmica? In: Nuevo Blog, 13 out. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/10/13/o-que-significa-um-avatar-do-facebook-na-era-pandemica/ . Acesso em: ??
Deixe um comentário