
Eduardo Ressetti Pinheiro Marques Vianna¹
Regina Martinello Gonçalves Lins²
Nos estudos do Direito Penal, o agente que pode ou não ser sujeito de punição desenha-se a partir de um conceito de “homem médio”. Esse título é dado ao “homem ideal”, “agente modelo”, “pessoa consciente e cuidadosa”, “pessoa prudente e de discernimento”, ou seja, tem o dever objetivo de cuidado. Portanto, é um termo generalizador, que não considera as capacidades pessoais do agente concreto[i].
Em breve explicação, a culpabilidade do agente deve ser aferida, dentro de um de seus elementos, confrontando a situação vivenciada pelo homem real, como aquela que se espera de um “homem-médio”. Todavia, a realidade carcerária no Brasil vai em direção diametralmente oposta.
Não há no Brasil, em sua esmagadora maioria, pessoas que possam ser consideradas como “homem médio”, dentro dos parâmetros mínimos doutrinários, passível da justiça carcerária.
Em pesquisa realizada pelo Governo Federal e pelo Ministério da Justiça, mais de 75% (setenta e cinco por cento) da população carcerária não chega ao ensino médio, sendo que poucos destes, conseguem, efetivamente, finalizar o ensino básico. Ou seja, aqueles a quem se dirige a norma penal no Brasil, em regra, não possuem, sequer, um ensino mínimo.
Desta feita, afirma-se com tranquilidade que, de cada quatro, três encarcerados não possui a menor condição de ser considerado, conforme a doutrina, portador dos requisitos necessários para ser classificado como “homem-médio”. E isto não é algo subjetivo, é um fato objetivo, pois a estrutura de formação do ser humano, conforme currículo escolar nacional, prevê etapas que não são oportunizadas a, pelo menos, 75% da população carcerária.
É importante recordar que não se trata de uma escolha do encarcerado, pois é dever do Estado propiciar, prover e estimular o jovem e adolescente ao estudo. Neste raciocínio, não é demais afirmar que o Estado falha ao não prover educação mínima à mais de 75% da população que se encontra encarcerada. Mas apesar de não propiciar o arcabouço para que o mesmo possua o discernimento, conhecimento sobre direitos, deveres, formação social, cultural, o Estado não se omite no momento de remeter ao cárcere estes cidadãos[ii].
Ou seja, a conclusão é que o “homem-médio” doutrinário utilizado para verificar o ato realizado pelo cidadão que comete um delito é de realidade educacional, social e cultural completamente diverso daquele a quem é direcionada e parametrizada, em regra, a aplicação da norma penal.
Neste contexto, imaginar-se que este cidadão (que conforme visto, repisa-se, é a maioria dos encarcerados) é “avisado, prudente e age de modo uniforme”, seria supor uma realidade de galáxia distante, mas de nenhum modo a vivenciada nos corredores dos fóruns e salas de audiências Brasil afora.
Por outro lado, a Justiça Restaurativa vem tomando corpo no Brasil e no mundo, com uma perspectiva moderna, inovadora e com foco nas reparações dos laços rompidos com o ato ilícito. Passa-se de uma visão punitiva, para aquela que coloca a vítima e as relações sociais atingidas pelo crime na perspectiva principal, bem como a reparação dos danos ocasionados.
Conforme ensinam Joseneide Gadelha Pamplona Mederios e Nirson Medeiros da Silva Neto[iii]:
Justiça restaurativa é uma forma de imaginar, praticar e vivenciar a justiça que se caracteriza pela inclusão de todos os afetados por uma dada situação de conflito que envolva danos, configurada ou não como crime ou ato infracional, com foco sobretudo no atendimento de necessidades e direitos humanos, na prevenção da violência (em suas diferentes expressões, a saber, direta, estrutural, institucional e cultural), assim como na reparação dos danos e na restauração do tecido social rompido em razão de uma ofensa. Esta abordagem apresenta potencial para favorecer processos dialógicos e emancipatórios no tratamento de situações conflitivas através do uso de tecnologias sociais que visam à responsabilização dos autores de atos danosos, à atenção aos traumas sofridos pelas vítimas e ao empoderamento de famílias e comunidades afetadas, reparando e fortalecendo os vínculos sociais estremecidos pelo conflito e pelos danos provocados.
De pronto, apenas com o conceito proposto pelos autores acima, observa-se que o foco não é a punição pela punição, a retribuição pelo ato ilícito com penas de restrição de liberdade. Com círculos de paz, rodas de diálogos, processos de mediação, o ponto principal é entender, conhecer, compreender os envolvidos no ato ilícito e propiciar a reparação dentro da realidade observada.
A característica de inter-relacionamento da Justiça Restaurativa vem explicada por Howard Zern[iv] ao iniciar sua exposição sobre os valores da Justiça Restaurativa, sendo prudente sua reprodução para melhor entendimento e enfrentamento do tema:
Os princípios da Justiça Restaurativa são uteis apenas se estiverem enraizados em certos valores subjacentes. Muitas vezes esses valores não são claramente enumerados e as pessoas presumem conhece-los. Contudo, para aplicar os princípios de modo coerente com seu espirito e proposito, devemos ser explícitos em relação a esses valores. Caso contrário, por exemplo, pode acontecer de utilizarmos um processo baseado na Justiça Restaurativa, mas acabarmos chegando a decisões não restaurativas. Para que funcionem adequadamente, os princípios da Justiça Restaurativa (o centro e os raios) devem ser cercados por um cinturão de valores. Para que floresçam, os princípios que constituem a flor da Justiça Restaurativa devem estar enraizados em certos valores. Subjacente a Justiça Restaurativa esta a visão de interconexão mencionada acima. Quer reconheçamos ou não, estamos todos ligados uns aos outros e ao mundo em geral através de uma teia de relacionamentos. Quando essa teia se rompe, todos são afetados. Os elementos fundamentais da Justiça Restaurativa (dano e necessidades, obrigações e participação) advém dessa visão. Mas como apontado por Jarem Sawatsky este valor da interconexão deve ser equilibrado por um apreço pela particularidade de cada um. Ainda que estejamos todos ligados, não somos todos iguais. A particularidade é a riqueza da diversidade. Isto significa respeitar a individualidade e o valor de cada pessoa, e tratar com consideração e seriedade os contextos e situações específicos nos quais ela se insere. A justiça deve reconhecer tanto nossa condição de interconexão quanto a nossa individualidade. O valor da particularidade nos adverte que o contexto, a cultura e a personalidade são fatores importantes que devem ser respeitados.
O Magistrado Marcelo Nalesso Salmaso[v], uma referência em Justiça Restaurativa, pondera de maneira brilhante sobre a realidade enfrentada pelos cidadãos a quem se destina a norma criminal, e o papel da Justiça Restaurativa:
[…] o objetivo final da Justiça Restaurativa é promover a construção de sociedades em que as relações sejam pautadas pela lógica relacional do cuidado, nas quais cada qual se sinta e seja responsável por si próprio, pelo outro e pelo meio ambiente, ou seja, instituindo a ideia de corresponsabilidade, de cooperação e de um poder com o outro, de forma a deixar de lado esse poder sobre o outro, que é causa de tanta insatisfação e, por conseguinte, de violência.
Utilizando-se da lição acima, é possível afirmar que a Justiça Restaurativa possui proposta que é possível classificar como orgânica. A estrutura orgânica seria aquela focada no desenvolvimento de atividades organizacionais adequado às realidades sociais, comunitárias e atenta às alterações incessantes nas relações interinstitucionais e interpessoais.
Sem adentrar em maiores minúcias, esta situação de movimentação incessante das relações e a sua inadequação por parte das organizações mecanicistas (ou de “estabelecimentos concretos”, não passíveis de flexibilidade e adaptação ágil às mudanças) já era imaginada por Zigmund Bauman em suas obras acerca da pós-modernidade.
Para Bauman (2001, p. 46[vi]), a modernidade líquida diz respeito a uma nova época onde as relações sociais, econômicas e de produção são frágeis, fugazes e maleáveis, comparadas assim aos líquidos. Já a modernidade sólida, o sociólogo define como as relações que eram solidamente estabelecidas, tendendo a serem mais fortes e duradouras.
A ausência de lapso temporal e espacial, a liquidez da pós-modernidade, em algum momento, exigiria das instituições, e neste caso da Justiça Criminal, adequações constantes, pois as relações estão sempre mudando, mas os Tribunais Superiores e os legisladores não acompanham essas mudanças no mesmo ritmo.
Neste ponto, é de felicidade ímpar a exposição de Carlos Henrique Sosa Araque[vii], em sua dissertação de Mestrado pela FVG, acerca da estrutura orgânica e seu viés social e de relação com as necessidade de adaptação do Estado:
A estrutura orgânica permitiria às organizações, ao Estado e à sociedade, ter um relacionamento mais adequado com uma realidade social, universal e cósmica que se revela harmônica em seus princípios. A estrutura orgânica organizacional parte das propriedades da metáfora orgânica, presente em qualquer sistema orgânico (biológico, atômico e cósmico), e surge a partir dos seguintes pressupostos: a realidade pode ser representada como uma estrutura em rede orgânica, e o comportamento das pessoas vem determinado pelo nível de consciência.
Assim, ante a sua característica de adaptação com a situação em concreto, a flexibilidade dos meios de mediação e conciliação a serem aplicados pelos facilitadores nos círculos de conversa e de paz utilizados na Justiça Restaurativa, e mais importante, o foco na restauração dos laços pessoais e valorativos dos envolvidos, permite à este modelo de resolução de conflitos enxergar com acuidade a realidade da vítima, mas igualmente do cidadão que cometeu o ato ilícito, dentro de todas as suas realidades, perspectivas e valores.
A realidade social carcerária evidencia que a Justiça Retributiva enxerga de maneira míope o sujeito passivo da justiça penal brasileira, parametrizando este com um sujeito de comportamento médio, com valores e esperando atos razoáveis de suas ações. Esquece que aquele sujeito passivo, na realidade, e de forma objetiva, não possui sequer formação básica educacional, vive em situação dissociada de qualquer base social decente e foi desprovido dos direitos mínimos previstos na Constituição em razão da omissão estatal.
Adotar como “homem médio” uma ficção construída fora das bases reais objetivas da sociedade brasileira, e em especial daqueles que estão mais próximos de não terem a cognição de se portar como “homem médio”, em razão da falta de recursos e oportunidades promovidas pelo Estado, retrata a atualidade da Justiça Retributiva, e este panorama possui na Justiça Restaurativa um alento.
Tratar a Justiça Restaurativa como um instituto orgânico é, ao que parece, normal, pois busca adaptar a justiça à realidade social vivenciada, e possui como foco não mais a punição, a segregação necessária, mas sim a restauração de laços, valores, e a priorização do entendimento de vítima, ofensor e terceiros relacionados com o ato ilícito e suas consequências, permitindo aberturas para a resolução do conflito e flexibilização conciliatórias tipicamente de estruturas orgânicas, não possíveis no modelo de justiça criminal vigente.
O “homem médio” da doutrina do direito, em especial da esfera criminal, classifica este objeto de parâmetro com o ofensor de maneira dissociada com a realidade social brasileira, de forma objetiva, e em especial quando se tem em foco a população carcerária nacional, a quem dirige-se a norma penal sob sua perspectiva de aplicação da lei e consequente encarceramento.
Diante deste dado objetivo de ausência de capacidade cognitiva da esmagadora maioria dos cidadãos inseridos no sistema carcerário, sem acesso à educação e valores, assim como ao alcance dos atributos mínimos que formam o conceito do chamado “homem médio”, propõe-se a Justiça Restaurativa com seu caráter orgânico como núcleo duro da política criminal atual.
Não se está a propor o afastamento das consequências dos atos ilícitos em face daquele que os comete, mas sim, aplicar um modelo de Justiça que permita o enquadramento da realidade objetiva do ofensor na perspectiva consequencial do seu crime.
A simples retribuição do ato, sem parametrizar o cidadão que o comete à sua realidade de vítima da omissão estatal, educacional e valorativa, que como visto, é a esmagadora maioria dos encarcerados sem sequer orientação básica, é prestigiar uma ficção à realidade. Pois ficto é o “homem médio” doutrinário, e real é o cidadão sem estudo, sem direitos mínimos, sem formação estrutural e que corresponde à mais de 75% da população carcerária.
A Justiça Retributiva vem, conforme verificado acima, tentando por teorias ainda em debate, adequar este conceito de “homem médio” de maneira a tornar menos injusta a aferição do ato ilícito ante a realidade de seu ofensor. Ocorre que ainda é embrionário o debate e não se observa em curto ou médio prazo significativa evolução que seja aceita pela doutrina e aplicada nas Cortes Criminais.
De outro lado, há na Justiça Restaurativa e seu caráter orgânico a oportunidade adequada para uma mudança de paradigmas, deixando de lado a ficção dissociada de mínima adequação com a realidade nacional do “homem médio”, e suas características que exigem atributos inalcançáveis para cidadãos sem acesso aos direitos constitucionais básicos, para que se trate o “homem médio” objetivamente real, com suas limitações impostas pelo sistema, e inserido em soluções de conflito que busquem restabelecer laços rompidos entre os envolvidos, prestigiando o entendimento de cada cidadão e suas realidades.
Referências:
[i] SANTANA, Selma Pereira de. A sociedade de risco e a repercussão das capacidades individuais do sujeito para a culpa não imputável. Cadernos de Programa de Pós-Graduação em Direito/UFRGS. V.08, n.2, 2013, p. 136.
[ii] NOVO, Benigno Núñez. A Educação Penitenciária no Brasil e no Paraguai, Educa +Brasil, s/a, p. 01. Disponível em: https://www.educamaisbrasil.com.br/etapa-de-formacao-e-series/ensino-medio. Acesso em: 03 fev. 2021.
[iii] MEDEIROS, Joseneide Gadekha Pamplona; SILVA NETO, Nirson Medeiros da. Justiça Restaurativa no Brasil: Experiências e Pesquisa de Sul a Norte. “Breve Histórico da Justiça Restaurativa no Âmbito do Poder Judiciário Brasileiro”. Plano de Ações da Coordenadora de Justiça Restaurativa do Tribunal de Justiça do Pará (TJPA), Revista Ciências da Sociedade, 2019, p. 01.
[iv] KEHR, Howard. Justiça Restaurativa. São Paulo: Palas Athena, 2015, p. 52.
[v] SALMASO, Marcelo Nalesso. A Justiça Restaurativa e sua relação com a Mediação e Conciliação: Trilhas fraternas e identidades próprias, Brasília/DF, 2016, p.01.
[vi] BAUMAN, Zigmund. Modernidade Liquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
[vii] SOSA ARAQUE, Carlos Henrique. O paradigma orgânico e seus reflexos no indivíduo, na sociedade, no estado e nas organizações. Dissertação (Mestrado em Administração) – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, Fundação Getúlio Vargas – FGV, Rio de Janeiro, 2000, p. 26.
¹Juiz de direito, Pós-graduado e especialista em Direito Tributário.
²Advogada, Pós-graduada em Direito Previdenciário.
Como citar:
VIANNA, Eduardo Ressetti Pinheiro Marques; LINS, Regina Martinello Gonçalves. O homem médio do Direito Penal: a característica orgânica da justiça restaurativa como alternativa para resolução de conflito equânime. In: Nuevo Blog, 09mar. 2021. Disponível em: https://nuevoblog.com/2021/03/09/o-homem-medio-do-direito-penal-a-caracteristica-organica-da-justica-restaurativa-como-alternativa-para-resolucao-de-conflito-equanime/ . Acesso em: ??
Deixe um comentário