Isolamento Social: Entre o tédio dos únicos, a insanidade dos privilegiados e a roleta russa dos excluídos!

Francis Kanashiro Meneghetti¹

A insanidade dos privilegiados

Até agora foi fácil! Até agora foi “mole”, como diz o ditado popular. Essas três semanas de isolamento social foram quase umas “férias forçadas”. Preparamos para ficar em casa. Compramos todos os ingredientes para fazer aqueles pratos que tanto gostamos ou que queríamos aprender a fazer. Baixamos ou compramos os livros que queríamos ler. Fizemos a lista dos filmes que assistiríamos, pois temos Netflix, Net Now, etc. Estamos fazendo cursos online, seja para entretenimento ou para capacitação profissional. Enfim, planejamos as estratégias para ficarmos sozinhos ou com pessoas da família. Criamos condições para isolar nossos amados velhinhos. Aparelhamos nosso local de isolamento para realizar nossos trabalhos de forma remota. Reduzimos nossos “riscos” às situações de encontros com os entregadores de comida, de medicamentos, de, eventualmente, produtos que pedimos pela internet. Com restrições, conseguimos álcool gel, lavamos as mãos quase que compulsivamente, usamos máscaras improvisadas e luvas. Agora estamos praticamente seguros do mundo contaminado! Ingenuidade ou ilusão. Agora começaremos a descobrir que a grande ameaça não vem só de fora da nossa casa. Não é só a COVID-19. Agora teremos que enfrentar nossas próprias sombras, para quem está sozinho no isolamento e as nossas e das pessoas que estão confinadas conosco, para os que estão com suas famílias. Apesar das rotinas domésticas serem diferentes, a dinâmica das relações afetivas se tornam cada vez complexas com o confinamento. Com o dia-a-dia das últimas três semanas, percebemos que perdemos ou diminuímos o interesse pela leitura, pelos filmes, pelos cursos online e também pelo trabalho. Ou, em outros casos, passamos a ter interesse desmedido por outras coisas. Lavamos as mãos, usamos álcool gel, fazemos sexo, comemos, falamos, escrevemos, por compulsão. Também passamos a perceber que precisamos muito mais da presença dos nossos velhinhos do que imaginávamos. Ou, ainda, que não precisamos de tanto tempo com algumas pessoas que estão juntas conosco no isolamento. Percebemos que podemos passar uma vida inteira com outras, pois se conseguimos ficar bem tanto tempo juntos e nos sentirmos felizes com a presença delas isso indica que nosso futuro será bom. Mas, também, podemos chegar à conclusão que não queremos ter que conviver com uma pessoa por tanto tempo. A verdade é que o “inimigo” externo apontou uma certa luz sobre nossas sombras. Muitos fantasmas, que de certa forma já sabíamos que tínhamos, agora nos assombram diuturnamente. Ansiedade, estresse, compulsão, pânico, depressão começarão a atormentar muitas pessoas. Agora é a hora de cuidar para não perder a sanidade.

O tédio dos únicos

Nem sei ao certo como estão vivendo, afinal sou do grupo dos insanos privilegiados. Mas imagino que não seja fácil ter que se isolar nos seus iates, afinal não é possível quantificar ou qualificar sofrimentos. Ou ter que viver nos seus condomínios fechados sem poder sair e usufruir da estrutura de classes para seu prazer e benefício! Que tédio ter que fazer academia nas suas próprias casas ou ter que esperar sua vez na agenda do condomínio, depois, claro, de uma servente ter praticamente esterilizado o ambiente inteiro para o próximo “patrão”! Sim, nesses ambientes, os trabalhadores – ou colaboradores para amenizar a diferença gritante que existem entre eles – não são funcionários do condomínio. Cada condômino é praticamente um patrão, afinal, pagar condomínios de sete, oito, nove, dez mil Reais, dá praticamente o direito de se tornar um novo patrão, sobretudo na lógica patrimonialista que abarca inclusive os ambientes privados. Não deve ser fácil ter que fazer a consulta online com psicólogos que cobram mil Reais a sessão, afinal, paga-se também pelo privilégio de ser atendido em um luxuoso, mas sóbrio, consultório decorado por um arquiteto conhecido. Não é fácil ter que comer todos os dias em casa a comida feita por sua cozinheira exclusiva, que agora passou a ter que dormir no trabalho para evitar ser contaminada no trânsito diário até sua casa.

O sofrimento existe e não pode ser banalizado. Mas deve ser balizado e referenciado, sem dúvida. Não se trata aqui de ser preconceituoso com que conseguiu melhores condições econômicas, mas de alertar que as condições objetivas da vida das pessoas são distintas e que vivemos sim em uma sociedade de classes, em que uns têm mais chances de serem contaminados do que outros. Se é verdade que em um primeiro momento a contaminação ocorreu com pessoas de maior poder aquisitivo no Brasil, ou seja, de pessoas que estavam viajando para o exterior, muitos a lazer, o que enfrentaremos agora é uma acelerada contaminação dos mais pobres. Agora é a hora dos excluídos começarem a sentir no corpo e na alma o desespero da roleta russa criada por nossa sociedade.

A roleta russa dos excluídos

Quando era jovem, por volta dos meus quinze anos, fiz umas das coisas mais estupidas da minha vida. Peguei o revólver calibre 38 do meu pai, abri o tambor e coloquei uma bala em um dos compartimentos. Rodei o tambor e com a inércia do mexer da arma fechei o tambor. Não sabia onde a bala estava nessa hora. A arma tinha capacidade para sete balas. Ela poderia estar no alinhamento da direção do cano de saída das balas (14,28%) ou não (81,79%). Levantei a arma e puxei o gatilho. O tiro não saiu.

Nessa pandemia, a vida dos excluídos é uma arma carregada com seis balas (81,79%). Com “sorte”, proteção contra a contaminação ou isolamento por falta de opção, pode cair para no máximo quatro (57,14%). Eu sei, eu sei, sempre terá um estatístico para dizer que não é bem assim. É apenas uma ilustração probabilística, uma racionalização. Muitos excluídos fazem o isolamento forçados porque não têm “serviço” agora que a demanda por suas atividades está baixa. Outros, como por exemplo os entregadores, mantém-se nos serviços – lembre-se que o trabalho formal praticamente está acabando – para conseguirem sobreviver. Outros, em situações ainda mais precárias, os excluídos dos excluídos, simplesmente precisam perambular pelas ruas porque não têm onde morar ou estão à procura de algum resquício de comida ou da ajuda de algumas pessoas. Os excluídos são os que praticamente não podem optar por ficarem em isolamento. A razão da vida deles é outra, geralmente sufocada pelo estilo de vida dos insanos privilegiados e únicos entediados.

Mas tem sempre os que pregam que em toda tragédia existem oportunidades, inclusive para os excluídos. Que é preciso pensar “positivo” para poder superar as dificuldades. Que seremos “melhores” depois de tudo isso. Não nego que se apegar a uma nova forma de perceber a realidade seja fundamental para enfrentar toda essa situação, mas, insisto, as oportunidades não são iguais para todos. É preciso se desvencilhar da positividade tóxica generalizada, ou seja, da ideia alienada que só pela “força interior” e com a “mente positiva” conseguimos mudar a nossa realidade individual e coletiva. Nossas histórias são recheadas de experiências boas e ruins, mas são distintas para posições sociais que ocupamos. Essas experiências despertaram sentimentos ambivalentes. Da alegria à decepção. Do vigor à falta de energia. Da euforia à letargia. Da vontade de viver à de morrer. Do ódio ao amor. Nossas vidas são recheadas de contradições por conta das nossas condições econômicas, sobretudo no plano dos afetos vividos historicamente de formas diferentes. Simplesmente tentar nos impor a obrigatoriedade de sermos positivos, de pensarmos sempre o melhor em todas as situações, se constitui em um ato de violência contra nós mesmos enquanto sociedade. É entregar-se ao engodo da imposição ideológica da meritocracia sem lastro com a realidade. É deixar de levar em consideração que somos falíveis e que muitas de nossas falhas estão intimamente relacionadas às condições concretas em que vivemos.

Não vou acabar este texto sem deixar uma esperança para os leitores. A esperança consiste na oportunidade de refletirmos sobre tudo que estamos passando sem ser prescritivo. O que fazemos com nossas reflexões, como elas podem ser fatores de mudanças vai depender da nossa capacidade de ação, individual e coletiva.

Enfim, agora posso ir descansar um pouco menos angustiado em relação as minhas chances de passar ileso a esta pandemia, afinal tem menos balas no meu revólver da roleta russa. Como Freud disse, “nós poderíamos ser muito melhores se não quiséssemos ser tão bons”. Um boa noite do insano (mas também hipócrita e moralista) privilegiado, porque, assim como o estatístico mencionado acima, sempre procuro uma racionalidade para justificar minha condição de privilegiado, mas, ainda, não tão insano!

¹Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor no Programa de Pós-Graduação em Administração e no Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

Como citar:
MENEGHETTI, Francis Kanashiro. Isolamento Social: Entre o tédio dos únicos, a insanidade dos privilegiados e a roleta russa dos excluídos!. Nuevo Blog, 2020. Disponível em: https://nuevoblogbr.wordpress.com/2020/04/11/isolamento-social-entre-o-tedio-dos-unicos-a-insanidade-dos-privilegiados-e-a-roleta-russa-dos-excluidos/. Acesso em: ??

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