Tragam um violão!

José Henrique de Faria¹

A crise histórica está de volta, agora batendo à porta impulsionada por um novo vírus. O projeto da direita conservadora há tempos fracassou, não apenas pela incompetência em sua condução, mas porque se trata de uma concepção historicamente falida. O vírus, real e altamente letal, fez vir à tona a irresponsabilidade política e o que já estava moribundo, evidenciando tudo o que era objetivamente projetado. Mas, ao invés de admitir o fracasso, a direita conservadora, seguida por oportunos analistas de plantão, buscou desesperadamente um culpado. E o melhor alvo foi e continua sendo a esquerda. Não a esquerda histórica, mas a esquerda genérica, esse grupo abstrato e não identificado em que se pode colocar qualquer crítico: basta uma crítica para qualquer um ser de esquerda.

A questão que se evidencia, contudo, é que a direita conservadora encontra-se diante de um dilema, pois tendo em vista a magnitude do problema que o vírus fez emergir (que estava sendo ocultado pelas narrativas), imediatamente indecisos cordões de analistas e autodenominados filósofos pedem exatamente a essa esquerda genérica confiável que ao invés de criticar o resultado apresente um projeto de salvação. O único projeto da denominada esquerda, genérica e flexível, é a velha estratégia de elevar o Estado Capitalista à liderança majestosa da orgia, colocando ordem no caos a partir de uma teoria geral aplicada, ou seja, nada de novo no reino encantado da economia.

Como fazer o Estado Capitalista organizar a orgia se o governo é o centro propagador da própria orgia? A resposta encontrada foi eleger um culpado (a esquerda genérica) e tentar matá-lo para fugir do debate. Uma prática sobejamente conhecida de sempre colocar a culpa fora de si e ir alterando os termos dos discursos conforme a conveniência. Nesse passo, os ditos filósofos e analistas de plantão podem afirmar, pelas redes sociais, que a esquerda genérica, além de culpada, morreu. Morreu e não foi sepultada. Como assim?

A questão que subjaz essa opinião de que a esquerda não tem mais projeto econômico e político-social é que quanto mais o tempo avança e as relações sociais de produção das condições de existência se alteram objetivamente, mais a organização da esquerda se tornou flexível. Essa condição permitiu à direita conservadora eleger uma esquerda genérica para chamar de sua. A esquerda histórica tem um projeto, mas esse não interessa admitir e nem é colocado em discussão, pois pressupõe que a excrescência deve ser combatida, mas não à custa do abandono da luta fundamental. Para alguns filósofos e analistas sociais esse projeto não vale por motivos doxológicos os mais variados. Não é difícil entender esses motivos.

Assim, é necessário fomentar o discurso de que a representação de classe no conflito fundamental se torne um ilimitado balaio de diferentes e incompatíveis seres, com alianças de todos os tipos, excluídas aquelas condenadas pelas narrativas momentâneas interesseiras. Nessa composição da esquerda genérica e flexível, o que ontem era conservador, hoje é progressista; o que era uma aliança espúria, hoje é convenientemente uma estratégia. Como à esquerda histórica tem sido negada a existência nos debates, ou seja, como o que não existe não pode morrer, resta um cadáver insepulto nas redondezas, o da esquerda genérica.

Como amanhã ninguém sabe, analistas conservadores exigem: tragam um violão antes que o ódio pela esquerda genérica acabe.

O projeto de classe, que de fato jamais orientou a representação política da insepulta esquerda genérica, confiável e flexível (ou heterodoxa, como preferem alguns), desapareceu inclusive do discurso: está valendo qualquer projeto de aliança política entre (neo)liberalismo reconceituado e (neo)keynesianismo acadêmico aplicado, desde que tenham um adjetivo de codinome “social”, ressuscitado das tumbas antigas dos faraós da economia. O problema é que a urgência em combater uma das piores espécies de governo burguês não está apenas obnubilando a reflexão política essencial, mas está também reafirmando seus equívocos práticos e conceituais. E nesse processo, o ser-de-esquerda, esse ser-crítico histórico, tornou-se um estranho também para a própria esquerda genérica, passando a ser um incômodo para a realização do seu projeto catabólico mais ousado: a autodestruição pela aliança de classes.

O resultado desse processo autofágico é histórico, repetindo-se não como farsa, mas como tragédia. No lugar da esquerda histórica brotou, alvissareira, a sempre frondosa árvore da eterna aliança da esquerda flexível na qual o fruto proibido que todos desejam ardentemente é justamente preservar a categoria econômica que permite explorar a força de trabalho. Essa é a garantia da confiabilidade: a legitimação da exploração. Assim, surge no horizonte a “grande descoberta” do que sempre foi negado: sem trabalho não há capital e sem a coordenação do Estado não há capitalismo que resista às suas contradições. Dizem que essa é uma novidade trazida ao debate pelo vírus: Trabalho e Estado são essenciais ao Capital. Isso só pode ser novidade para aqueles que estão lendo pela vigésima vez a 39ª edição resumida de livros escritos há mais de 170 anos. 

A direita momentaneamente no governo tenta fazer um reflorestamento político e social com conhecidas plantas alienígenas alucinógenas no qual não há lugar para o ser-de-esquerda. Portanto, a falta de um projeto político de esquerda, de que reclamam alguns filósofos e analistas políticos e sociais, é exatamente a defesa de uma absoluta prevalência, nesse campo, de uma falsa e oportuna esquerda, uma esquerda flexível carregada de proposituras para salvar seu histórico algoz das crises que lhe são inerentes. E exatamente aí se encontra o paradoxo: para negar o fracasso é fundamental assassinar a alternativa da salvação, sem sepultá-la.

Como os ditos filósofos e analistas sociais olham para a realidade de maneira que só conseguem ver o fato em si mesmo e em suas relações manifestas, ao anunciar a morte conveniente da esquerda genérica, atacam no cerne a própria solução que procuram. O processo é simples: tudo que é oposto é demonizado. E qual seria o nome do demônio preferido dos plantonistas? Leviatã ou Comunista? No mundo que preserva alguma racionalidade capitalista o demônio foi abandonado na fímbria, mas nas paragens idealistas ele habita o imaginário em sua forma idealizada do grande belzebu.

Por isso que a crítica ao idealismo faz referência à concepção de que o pensamento move-se por si mesmo, impondo-se ao objeto segundo a lógica da ideia. É assim que o capiroto da oposição ganha vida: criado onde não pode existir, o capeta chamado esquerda deve ser morto pelo imaginário que o criou. Essa concepção idealista parece ter sido plasmada no limbo da história pelos desenvolvedores de falsas concepções das redes sociais, esses novos filósofos e analistas de plantão, que insistem em querer criar e transformar a realidade a partir do pensamento. Criam a besta maligna da esquerda para poder culpá-la e matá-la, mas não a sepultam porque precisam de sua teoria geral aplicada.

É dessa forma que os praticantes de análises da internet se tornam proponentes de projetos sociais cujo único contato com o concreto é o ser imaginário, no qual o pensamento basta-se a si mesmo, sem correspondência mediada com o real, ou seja, sem sequer alcançar o estatuto da matéria, já que tomam por referência modelos teóricos misteriosos e doutrinários que induzem ao misticismo. Quantas soluções mágicas emanam dessa aventura socioeconômica construída na cozinha palaciana. Mas enquanto o mundo das ideias tergiversa sobre a realidade nas redes sociais, o mundo concreto segue seu curso histórico, “pois toda vida social é essencialmente prática”. Discurso que não tem correspondência na realidade é apenas retórico e quando o que é retórico pretende ser a realidade fruto da interpretação, o mundo das ideias passeia com desenvoltura. A esquerda concreta é histórica. A esquerda imaginária é aquela genérica e flexível em cujo interior tudo cabe. Essa esquerda genérica para existir no imaginário requer narrativas e interpretações pretensiosamente hermenêuticas.

Que hermenêutica é essa que inspira esses círculos ficticiamente filosóficos, analíticos sociais e jurídicos empolados que decretam a morte do que não existe senão na imaginação? É uma hermenêutica da licenciosidade conceitual para justificar uma opção política. É uma hermenêutica que já tem a conclusão antes da análise dos fatos históricos e sociais. É, de fato, uma Santíssima Hermenêutica da Conveniência. Sendo incapaz de interpretar seu próprio discurso, é nada mais do que uma hermenêutica carente de si mesma. O projeto de tal hermenêutica é matar toda oposição qualificada, preservando insepulta aquela da qual pode tirar algo útil, que ela denomina genericamente de esquerda.

As críticas desses hermeneutas de ultima hora carecem de fundamento e andam soltas nos discursos da intelectualidade brasileira, tanto aquela religiosamente conformada e ingênua como aquela cheia de convicção astrológica. Nada de novo: sempre foram discursos sem concretude. O problema a ser expresso é que muitas dessas análises que criticam a esquerda genérica, que começam e terminam suas avaliações no puro plano das ideias, correspondem às concepções daquela parte da sociedade que está eivada de preconceitos raciais, de discriminações, de exclusões sociais, de perseguições oficiais a pretos, pobres e à comunidade LGBT. A essa parte aliam-se tanto uma parcela da sociedade que hipocritamente se omite (que está à toa na vida) quanto outra que eventualmente se sente religiosamente “desconfortável” com os “crimes contra a humanidade”, mas que acredita piamente que o problema é sempre o outro e que credita a esse outro a solução que transcende o divino (a ideologia do mérito).

É também exatamente esse tipo de segmento da sociedade que alimenta a proposição e execução de projetos que têm como objetivo unicamente a lógica da acumulação que não pode parar, mesmo colocando a gramática sanitária e socioambiental no limite extremo da periferia e liberando o centro destrutivo para operar sem resistência, protegido pelo ar condicionado e os microfilmes dos veículos de luxo. A questão sobre se a esquerda genérica tem ou não projeto alternativo à destruição promovida pela política conservadora é tão óbvia que não é necessário sequer um racionalismo lógico para formular sua gênese.

Para esses autodenominados filósofos e analistas, as consequências funestas implícitas na destruição acelerada da sociedade, no esfacelamento das relações de trabalho, na reforma da previdência, na exploração do chamado ecossistema, são devidas à herança da esquerda. Uma esquerda genérica criada pelo discurso, que jamais existiu como esquerda histórica. Como a esquerda histórica não pode ser extinta, sobra responsabilizar e tentar destruir a esquerda fictícia, genérica, flexível e confiável, sob o argumento de que ela é incapaz de propor um projeto salvacionista para o capital, ou seja, um projeto confiável de reprodução ampliada do capital que se encarregue de negar as decadentes condições materiais mínimas da vida humana sustentável promovida pelos governos do Estado Capitalista.

É preciso matar a esquerda genérica porque essa direita, que se agarra à concepção mística de economia, não tem esse projeto e não possui estatuto teórico para o debate. Esse projeto de salvação do capital também não está e não estará na agenda crítica da esquerda histórica, vinculada à luta de classes. É a esquerda genérica e flexível que detém a fórmula da teoria geral aplicada. Assim, é ela que deve de imediato morrer politicamente, embora deva permanecer insepulta para poder ser exorcizada mantendo viva exatamente a teoria geral aplicada à reprodução do capital coordenada pelo majestoso Estado Capitalista.

Antes que o ódio pela esquerda genérica acabe e se transforme em seu oposto (que historicamente sempre acontece nas crises de acumulação), tragam um violão. Quando o capitalismo se encontra em seu ciclo de expansão, os filósofos metafísicos e cientistas sociais empiristas anunciam a morte necessária da esquerda genérica, culpando-a pela ineficácia do seu projeto de sobrevivência em favor do capital e seus avatares. Nessa fase, os gênios fantasiosos, os messias enviados pelas divindades para alcançar a plenitude do sagrado, voam soltos pelas pradarias do planalto. Como sempre, apontando o culpado imaginário do fracasso, que é sempre o outro e que está em qualquer lugar do discurso. Mas quando o ciclo se altera e a crise emerge, esse culpado é exatamente aquele de quem o sistema precisa para sobreviver, aquele que tem a fórmula.

Trata-se, então, de ressaltar a responsabilidade do outro: “back to work”, já bradavam os gestores nas greves dos operários da Ford na década de 1920, organizadas pelo United Auto Workers. A economia capitalista nunca pode parar. Portanto, é necessário um projeto e se o projeto conservador fracassa, sucumbe, chama-se a esquerda insepulta, genérica, flexível e confiável para fantasmagoricamente salvar o sistema de capital em nome da virtude. Os apoiadores dos plantonistas chamam o experiente e confiável vaqueiro prático quando percebem que a vaca está caminhando em direção ao brejo.

O que está em causa, portanto, não é o debate sugerido midiaticamente entre a direita conservadora (ou direita liberal/neoliberal) e a esquerda histórica. Esse é um falso e imaginário debate. O que de fato existe é um enfrentamento de narrativas no campo da reprodução do capital. O que está em causa não é um debate histórico, mas uma tragédia civilizatória conduzida por uma ideologia política ao mesmo tempo autoritária, socialmente excludente, juridicamente parcial e economicamente desastrosa e irresponsável, que precisa de uma dita esquerda genérica insepulta, flexível e confiável para sair da crise. O debate para enfrentar as crises capitalistas é entre (neo)liberais e (neo)keynesianos.

Excluída dos debates, a esquerda histórica precisa estar preparada para transcendê-los e às suas práticas periféricas, garantindo que o essencial (astuciosamente desviado para a margem pelos contendores) possa seguir seu caminho transformador. Concentrar os debates em torno das idiotices escatológicas, do moralismo religioso, da preconceituosa demência e das incompetências políticas, não vai levar a lugar nenhum que seja objetivamente diferente do que é. Esse debate entre a direita conservadora e a esquerda genérica e flexível só interessa ao Capital.

A tragédia civilizatória em curso precisa ser enfrentada sem concessões, sem jamais abandonar o fato de que transformar e revolucionar está muito distante do simples reformar. A luta fundamental é histórica e não simplesmente contextual. A esquerda histórica precisa continuar enfrentando objetivamente seu inimigo concreto, bem como essa categoria de zumbis filosóficos e veneradores de cadáveres insepultos da análise social que, recentemente promovidos, perambulam pelas calçadas da fama com seus venenos alienantes. Eles também são vírus mortais.

¹Doutor em Administração pela Universidade de São Paulo- FEA/USP e Pós-Doutor em Labor Relations pelo Institute of Labor and Industrial RelationsILIR – University of Michigan. Professor Titular Sênior da Universidade Federal do Paraná (UFPR) no Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGADM) e Professor Visitante da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) no Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGA).

Como citar:
FARIA, José Henrique de. Tragam um violão!!. Nuevo Blog, 2020. Disponível em: https://nuevoblogbr.wordpress.com/2020/04/07/tragam-um-violao/. Acesso em: ??

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