
Eduardo Ayrosa¹
Acima de ser um fato social total, a comida e o comer são atos que remetem a reações que vão do total deleite dos sentidos à mais profunda revolta, passando por admiração, desejos sabidos e não sabidos, amor que se dá e se recebe, inveja, repulsa… Entre folhas, favas, alfajores, frijoles, farofas, farfalles, feijões, na mesa aprendemos muito sobre afetos. E quando digo que aprendemos com o cozinhar e o comer, o digo de forma bastante ampla. A comida é um caminho para aprendermos a amar e a mostrar o amor que temos – ou mesmo o que não temos – pelo outro. Falar sobre a comida e o comer é, de alguma forma, falar sobre o amor em suas várias formas.
A educação dos afetos mediada pelo cozinhar e pela comida vai além da união harmônica das pessoas. Lembro de Dona Elza, que vivia com a família no apartamento logo abaixo do meu. Eles eram recém-chegados de Belém, e graças a circunstâncias que não importam aqui, nos enviaram um dia um prato de pato no tucupi. Minha mãe retornou o prato com algo dentro, não lembro o que era, mas era necessário que o conteúdo fosse no mínimo à altura daquele pato (o que era bem difícil). O prato que ia e vinha inaugurou uma troca de comidas e correspondentes afetos que se prolongou por muito anos de amizade fraterna, e as trocas cessaram somente quando Dona Elza e sua família retornaram a Belém. A economia de afetos nessas trocas, um potlatch, foi alvo de reflexão de Marcel Mauss (2003) no seu texto “Ensaio sobre a dádiva”, publicado originalmente em 1925. O amor que se dá ao dizer “benvindo” com algo de comer é acompanhado de uma dívida, uma expectativa de retorno. Bataille associou o potlatch à noção do dispêndio, que acontece numa economia em que a soma final de ganhos das partes nunca é zero. O outro ali é identificado como um rival. Nas palavras de Bataille (2014), “o valor de troca da dádiva resulta do fato de que o donatário, para apagar a humilhação e rebater o desafio, deve satisfazer à obrigação – contratada por ele quando da aceitação – de responder posteriormente por uma dádiva maior, ou seja, de retribuir com usura.” (p. 25). Com a dádiva, aprende-se aqui sobre a dívida social, que para Bataille é um desafio de difícil equilíbrio, remetendo a uma negatividade que em outro texto dele mesmo seria nomeada como a parte maldita.
Não só oferecemos, mas falamos sobre o que cozinhamos e comemos. A comida abre um jogo simbólico de enorme riqueza. Não só falamos, mas também mostramos o que preparamos e comemos nas redes sociais, num jogo de exibição orgulhosa e por vezes até mesmo perversa. Nossa comida, algo que acontecia há poucas dezenas de anos acontecia prioritariamente no âmbito familiar privado, ganha significado público nos feeds de Facebook e Instagram (que, talvez não por acaso, são feeds!). Ao mostrar meu almoço eu partilho minha felicidade, mesmo que ela não esteja lá. Talvez aquilo que mostrei no Insta não seja só comida, mas também sintoma! Da comida, faz-se um significante de felicidade, gosto, habilidade, opulência, e disso produz-se sentimentos revelados e ocultos, conscientes e inconscientes, que constituem uma educação dos afetos de cada um de nós.
Me lembro do bolo que minha tia fazia sempre que eu a visitava, um bolo quentinho, assado na hora, que eu sempre achei que era “pra mim”. Das macarronadas da casa de minha madrinha. Não importa se eram bons, nem sei mais, mas me constituem. Pelo cozinhar e a comida retemos lembranças que se tornam reminiscências e constituem nossas histórias. Como Proust, cada um de nós tem nossas “madaleines”, comidas que se perdem no tempo mas não na memória, se transformam em signos encantados de um tempo que se reconstitui na linguagem. O cozinhar, mais do que alimentar os corpos, constitui narrativas familiares fundamentais, com sabores e práticas que trazem de volta nossos pais e avós, tios, madrinhas. A indústria bem sabe disso. Um velho anúncio da Pillsbury diz “Nada diz eu te amo como algo que vem do forno”. Mesmo sabendo da parte maldita que a exibição do comer e da comida envolve, prefiro lembrar das socialidades afetuosas a que a que a comida remete. Afinal, o bom da vida nos faz esquecer das amarguras. Então, vamos lembrar das histórias familiares que são criadas na cozinha e contadas à mesa. De tudo sobre o amor e o amar que aprendemos nas panelas amassadas, nas colheres de pau velhas, nos escorredores de macarrão, nos rolos de pastel, nos talheres que às vezes nem sabemos bem para que servem e que, por isso mesmo, nos fazem rir, e entre risos, engordar felizes.
Referências:
MAUSS, M.; LÉVI-STRAUSS, C. Sociologia E Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
BATAILLE, G. A parte maldita: Precedida de “A noção de dispêndio”. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
¹Doutor em Administração pela London Business School. Professor na Universidade Positivo.
Como citar:
AYROSA, Eduardo. Sobre comer e amar: a comida e os afetos. Nuevo Blog, 26 abr. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/04/26/sobre-comer-e-amar-a-comida-e-os-afetos/. Acesso em: ??
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