Quanto maior a certeza, menor a liberdade: privacidade digital no uso de app

Fernando Vianna¹

Ao escrever um texto sobre tecnologia nos dias de hoje, é inevitável a aproximação à era que estamos vivendo, que podemos chamar de: a era do COVID-19. Este vírus que gera discussões políticas, econômicas, tecnológicas e sociais, também afeta as decisões relacionadas ao impacto que os aplicativos viabilizados pelas Tecnologias de Informação e Comunicação (as TIC´s) têm em nossas vidas. Analisar estas decisões dentro do contexto que vivemos, talvez seja o maior desafio de nossa sociedade atualmente, por dois motivos: primeiro, por estarmos ainda mais imersos em um modelo de vida digital e dominado por plataformas e aplicativos; e segundo, por não termos um conhecimento pleno do funcionamento destas tecnologias, quanto à contrapartida cobrada por elas, mesmo quando não cobram financeiramente.

A plataforma ix.br, um projeto do Comitê Gestor da Internet no Brasil, mostra que no último ano quase dobramos o tráfego de Internet no país, com o fluxo do último mês de março sendo quase vinte por cento maior que o fluxo de fevereiro. Isto significa que estamos usando muito mais a Internet, possivelmente, devido ao fato de permanecermos em nossas casas, trabalharmos em nossas casas, nos divertirmos em nossas casas, educarmos filhos em nossas casas, entre outras atividades. Apesar da realidade de uma vida quase totalmente digitalizada ser um privilégio não acessado por todos os brasileiros, é fato que a vida digitalizada foi impactada pelas orientações da Organização Mundial da Saúde, especialmente quanto à necessidade imediata de isolamentos e distanciamentos sociais físicos.

Estas necessidades geraram um aumento da dependência de plataformas e aplicativos mas, aparentemente, a preocupação com a segurança e privacidade de nossos dados acabou sendo deixada de lado, tomando um caminho já comum quando falamos sobre novas tecnologias, digitalização e mundo 4.0. Por vivermos em uma sociedade da eficiência e da racionalidade instrumental, onde a tecnologia é, em larga medida, vista como benéfica, empoderadora e ludicamente enigmática, não temos dúvida quanto à sua idoneidade. Somos doutrinados e ensinados a pensar desta forma: as melhores escolas são aquelas que ensinam programação e disponibilizam tablets desde a primeira infância; em nossos empregos a adoção de um sistema computacional para substituir dez, quinze, mil funcionários, é ótima, pois torna uma empresa secular em uma empresa smart (inteligente); as cidades que adotam tecnologias de monitoramento são smart cities (cidades inteligentes).

Desta forma, como pensar nos aplicativos e plataformas digitais por uma perspectiva que não seja a hegemônica?

Para esta reflexão, proponho algumas análises que considero emergenciais: a primeira é a política; a segunda é a tecnoreflexiva; e a terceira é a do consentimento. Quando falo de uma análise política, não estou falando de uma análise de fake News ou da Cambridge Analitica, apesar de achar importante que o documentário “Privacidade Hackeada” (Netflix) seja assistido. A análise política diz respeito, no caso brasileiro, aos constantes ataques que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei 13.709/2018) vêm sofrendo, quanto à data em que entrará (ou entraria) em vigor, que seria agosto de 2020. Seria possível falar apenas desta Lei este texto inteiro, mas basta dizer que, entre todos os seus conteúdos, ela afasta a possibilidade de aplicativos e plataformas não explicarem corretamente as finalidades para as quais os dados fornecidos pelos usuários serão utilizados, e impõe limites aos cruzamentos destes dados, entre outras providências. E isto é algo que as organizações que detêm estes aplicativos e plataformas não admitem. Por isso, com a entrada em vigor da Lei 13.979 de 2020, que definiu medidas para o combate do COVID-19, o lobby das organizações digitais viu no seu artigo 6º uma brecha para o adiamento da entrada em vigor da LGPD. O mencionado artigo determina que os dados essenciais à identificação de indivíduos infectados deverão ser compartilhados entre empresas públicas e privadas, e o governo. Assim como é uma prática das políticas de privacidade e termos de uso de aplicativos e plataformas, o mencionado artigo sexto da Lei 13.979/2020 não esclarece quais são estes dados e nem de que forma serão tratados.

Segundo, a tecnoreflexão que proponho aqui está relacionada ao momento singular que vivemos e nossa privacidade. Em um momento que podemos estar perto de nossas famílias, refletir sobre nossas decisões e sobre as decisões daqueles que estão definindo nosso futuro, passamos a utilizar ainda mais aplicativos e plataformas digitais. Um momento que seria de privacidade vira uma série de posts, stories, likes, fotos e vídeos sobre aquilo que temos de mais íntimo, nossa casa, nossa família e nossa própria intimidade. Utilizando os conceitos de Byung-chul Han, estamos despidos para as plataformas. Mesmo que elas não estejam despidas para nós, pois o funcionamento de seus algorítimos não é compreendido nem pelas próprias organizações. E não satisfeitos, despimos nossos pais, filhas e filhos, maridos e esposas, amigos e amigas para que sejam quantificados e transformados em dados a serem explorados. No lugar de reflexão, somos violados voluntariamente em um processo incessante de dataficação. A cortina que fechamos para o vizinho e para a rua, escancaramos para o Facebook e para o Instagram. E isso nos leva à última reflexão, e talvez a mais dura: consentimos com tudo isso.

Ao nos abrirmos para todas as plataformas e aplicativos digitais, é diametralmente oposta a possibilidade de pensarmos em privacidade para nós, usuários e usuárias. Isso porque vivemos, nas palavras da Professora de Harvard, Soshana Zuboff, em um capitalismo de vigilância (em tradução livre). E o termo não poderia ser mais adequado. O capitalismo é caracterizado, entre outras características, pelo acúmulo infinito. Desta forma, vivemos em um mundo digital que mercantilizou esta vigilância, e tem o objetivo de acumular cada vez mais dados a nosso respeito, e de todos aqueles que nos cercam, pais, mães, filhos, filhas, amigos, amigas, inimigos e inimigas. Não interessa exatamente o grau de parentesco daqueles com quem nos relacionamos, mas interessa a forma como olhamos (nós ou nossos filhos) para uma foto ou os milésimos de segundo que levamos para avaliar uma refeição e trocar de série na televisão ou celular. É este excedente de comportamento que gera o dado, ou o novo petróleo, segundo o Relatório do Fórum Econômico Mundial de 2019, que as organizações que dominam o mundo digital (e hoje, o mundo real) precisam para controlar nossas vidas. E, esta expropriação de nossa subjetividade, que sofremos a cada segundo no mundo virtual, só é possível, por aquilo que menos nos importa: os termos de consentimento.

Pesquisas recentes nos mostram que mais de oitenta por cento de usuários de aplicativos e plataformas digitais aceitam qualquer termo e alteração sem lê-los adequadamente. E, caso não aceitemos diretamente os termos de atualizações, ao aceitarmos na primeira vez, já concordamos com as alterações posteriores. Brinquedos, bonecas, jogos digitais, aparelhos de ar-condicionado, patinetes, carros e relógios digitais. Tudo hoje é acompanhado por termos que não lemos, mas que autorizam empresas e Estado a direcionarem nossas vidas e dos nossos. Não estamos mais vivendo em uma realidade em que os dados eram utilizados para melhorar um produto ou serviço, esta é uma percepção romântica, arcaica e conformista. Vivemos na era do capitalismo de vigilância, na qual os nossos dados são usados para definir quem vemos, o que gostamos de assistir, o que vamos comprar e quem devemos amar. Nas palavras da Professora Soshana Zuboff, quanto maior a certeza que temos sobre um filme, um produto, um serviço ou uma pessoa, menor é a nossa liberdade.

¹Doutorando em Administração pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Mestre em Administração pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

Como citar:
VIANNA, Fernando. Quanto maior a certeza, menor a liberdade: privacidade digital no uso do app. Nuevo Blog, 21 abr. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/04/21/quanto-maior-a-certeza-menor-a-liberdade-privacidade-digital-no-uso-de-app/. Acesso em: ??

Um comentário em “Quanto maior a certeza, menor a liberdade: privacidade digital no uso de app

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  1. Fernando, o seu texto contribui para reflexões úteis e atuais.
    Vive-se a Pandemia da invasão de privacidade, e reproduz-se o comportamento na lógica do opressor/oprimido, entretanto, a liberdade do mundo digital não é uma possibilidade vislumbrada.

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