De que ciência necessitamos?

The George Peabody Library, Johns Hopkins University, Baltimore, Maryland, 1878.

Fernando Neubarth¹

Essa reflexão precede a pandemia. No entanto, torna-se ainda mais importante a partir de tantas situações quase inclassificáveis; desconexas, inapropriadas e seguramente criminosas, por descaso, negligência ou franca irresponsabilidade. No momento em que a ciência enfrenta um novo e potente desafio, é preciso valer-se do conhecimento já adquirido e do bom senso. A recuperação do estímulo ao pensamento crítico será imprescindível para reconstruir o mundo pós-pandemia, assolado por um guerra de interesses econômicos e ideológicos que, valendo-se de informações falsas, desdenham a importância da natureza e asfixiam qualquer possibilidade de um desenvolvimento com mais justiça social e humanidade.

Um verdadeiro clássico do marketing nacional, o slogan “O mundo gira e A Lusitana roda”, da empresa de mudanças A Lusitana, fundada em 1921 pelo Comendador Joaquim Monteiro, tornou-se um bordão da cultura popular. Carrega em si algo da lógica herdada dos imigrantes portugueses e tem o valor inestimável, puro e cristalino da filosofia do homem que sabe que a terra finda onde recomeça.

A proposta de colocar no caminhão de mudanças, encaixotados e sem rumo certo, valores que seriam estranhos à uma visão mais mecanicista na área do ensino e educação, “higienizando” assim as escolas e universidades de incômodos e pseudo-obsolecências tais como a sociologia, a antropologia e a filosofia não é encomenda recente. Volta e meia aparece quem pede. Ou resolve mandar.

Em sentido inverso, iniciativas exemplares como a da Drª Gundula Bosch, que dirige a R3 Graduate Science Initiative na Escola de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg, em Baltimore, Maryland, apontam para a necessidade de treinar estudantes para serem pensadores, não apenas especialistas. Muitos currículos de doutorado tem como objetivo produzir pesquisadores com foco limitado, ao invés de pensadores críticos. Isso pode e deve mudar, afirma ela, em publicação na revista Nature[i].

Esse direcionamento teria iniciado e, por razões de geopolítica e interesses econômicos, se expandido, particularmente nos Estados Unidos, na segunda metade do século XX, por uma suspeita de que artefatos intelectuais dessas ciências tidas como soft, as nossas humanas, estimulariam a agitação dos campus universitários. Coadunou-se por conveniência com a terceirização dos departamentos de desenvolvimento e pesquisa das indústrias nas universidades, definindo – e financiando – currículos e fazendo com que os estudantes tivessem garantidos seus empregos com a graduação. Esse conceito mecanicista parecia apropriado na teoria e válido para todas as áreas.

Na argumentação da autora do artigo, com a pressão para tornar mais rápida e produtiva a formação, muitos programas de doutorado em ciências biomédicas abreviaram seus cursos, eliminando oportunidades de colocar a pesquisa em um contexto mais amplo. Nesse cenário, torna-se improvável que a maioria dos currículos de Philosophy Doctor (PhD) possam nutrir grandes pensadores a criar soluções dos problemas que a sociedade tanto necessita. Não basta saber todo o ciclo de vida de um microorganismo, mas muito pouco sobre a vida científica. Há necessidade de aprender a reconhecer como os erros podem ocorrer, avaliar estudos de pesquisas que não tiveram o esperado sucesso e identificar as falácias lógicas na literatura; mas, acima de tudo, é preciso compreender o processo científico, com suas limitações e potenciais armadilhas, assim como também seu lado lúdico, suas descobertas ao acaso e seus grandes desastres.

A implantação de um novo programa, ainda segundo relato da Drª Gundula, enfrentou resistências e ceticismo. Para muitos, a produtividade científica dependeria mais do conhecimento mecânico do que da competência no pensamento crítico. Havia o temor de que cursos interdisciplinares sobre ética, epistemologia e habilidades quantitativas roubassem tempo do conteúdo especializado. A defesa do projeto se sustentou na tese de que pensamento crítico e menos aulas obrigatórias específicas podem proporcionar aos alunos uma produtividade ainda maior. Discussões interdisciplinares estimulam o pensamento amplo e crítico sobre a ciência e os alunos passam a considerar as conseqüências sociais dos avanços de suas pesquisas. Horizontes mais amplos provocam reflexão a respeito dos limites da ciência e a convergência entre a capacidade do cientista com o que é plausível do ponto de vista moral. Pesquisadores assim educados farão ciência com mais consciência, gerando melhores e mais racionais resultados, e contribuirão de fato para o bem da humanidade. A ciência deve se esforçar em melhorar a si mesmo e não apenas se auto-corrigir.

Em conclusão, é essa a lacuna que o projeto na Johns Hopkins pretende preencher ao ressaltar a importância de se colocar a filosofia de volta ao doutorado em filosofia – isso é, o “Ph” de volta ao PhD. Muito tempo antes, William Osler (1849-1919), considerado “pai da medicina moderna” e  professor na mesma Escola, já recomendava aos seus alunos, para além dos livros técnicos, a leitura de clássicos da literatura, no intuito de melhorar sua educação, não somente como estudantes, mas para torná-los pessoas melhores. Mais “Ph” no PhD.  Seguindo em direção sensata e segura e não na contramão do traçado civilizatório. Vale para todos. Afinal, o mundo gira e A Lusitana roda.

Referência:

[i] BOSCH, G.. Train PhD students to be thinkers not just specialists. Nature, v. 554, n.7692, 2018. https://doi.org/10.1038/d41586-018-01853-1

¹Médico, FAMED UFRGS 1983. Especialista em Clínica Médica e Reumatologia. Presidente da Sociedade Brasileira de  Reumatologia – SBR/2006-2008. Escritor,  prêmios Açorianos e Henrique Bertaso – 1994, categoria livro de contos e autor revelação e Prêmio Nacional para Médicos Escritores – 2000.

Como citar:
NEUBARTH, Fernando. De que ciência necessitamos? Nuevo Blog, 03 Jun. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/06/03/de-que-ciencia-necessitamos/ . Acesso em: ??

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