Morrer muitas vezes nos (des)territórios da mineração

Fonte: Agência Brasil/ Jornal NH (02 Jun. 2019).

Flávia Naves¹

Informo que abdiquei da esperança. Da esperança-mercadoria, que implica em esperar, como argumenta Eliane Brum[i]. E essa atitude implica em evitar paliativos ao refletir sobre fenômenos sociais contemporâneos.  Talvez, apenas a radicalidade da destruição que paira ao nosso redor seja capaz de nos colocar em movimento contra a impossibilidade da vida que se consolida a cada dia.

As frágeis notas que pretendo registrar – e que talvez permitam analogias sobre outros contextos sociais – não são pessimistas. São superficiais, considerando a profundidade da desigualdade e da violência enraizadas em nossa sociedade, camufladas e legitimadas em estratégias corporativas. Nesse cenário, um dos maiores medos humanos – a morte – é banalizado.

Não me refiro à experiência da morte como parte do ciclo da vida. Mas, da morte como ação planejada, controlada, imposta e naturalizada por empresas que dominam todas as possibilidades de manifestação da vida ao seu redor. Me refiro a um aspecto central do contexto necrocapitalista[ii]: aquele no qual corporações criam espaços nos quais subjugam a vida pelo poder da morte.

Esse é o caso dos territórios (com história, cultura, identidades, natureza e sociabilidades particulares) tomados pela mineração. Seguindo uma lógica de apagamento de tudo que dá sentido e sustenta a vida local, as mineradoras transformam esses espaços em (des)territórios.

Tudo começa como um surto febril, criado por uma centelha de promessas corporativas – difundidas como certezas – sobre empregos, desenvolvimento e melhores condições de vida. Em pouco tempo, a ilusão do desenvolvimento pleno não se sustenta. Com empregos raros e precários e condições de vida deterioradas[iii], surgem dúvidas sobre o futuro. À medida que morrem as expectativas positivas com a mineração, instala-se um ambiente de medo, no qual as pessoas começam sentir sua liberdade reduzida.

Nos (des)territórios da mineração tudo é matéria-prima. Inclusive as pessoas que habitam esse espaço e que descobrem que qualquer ideia, qualquer projeto, tradicional ou novo, só será possível se for coerente com as estratégias e metas das empresas mineradoras. Com a imposição de uma visão única, empobrecida sobre trabalho e vida, morrem a criatividade e a agência de indivíduos e coletividades.

O necrocapitalismo não precisa de pessoas qualificadas, críticas ou pensantes. Para o alcance dos objetivos empresariais é melhor que sejam abolidos direitos e cidadãos livres. O que esse sistema precisa é de indivíduos subalternos usados como mão de obra que, à semelhança da natureza, estariam disponíveis para serem explorados até a exaustão. Mas, o emprego na mineração não garante tranquilidade. Traz riscos, ameaças, silenciamentos comprados ou coagidos (e o medo do desemprego – instrumento de controle – sempre permanece). A vida está sempre em suspense, na dependência da empresa. Minas Gerais tem vários exemplos. Em janeiro de 2020, o estado tinha 50 barragens de alto risco, com elevada probabilidade de rompimento[iv], como aconteceu em Mariana (2015) e Brumadinho (2019). Sofre-se com a expectativa, esperando que o risco não se transforme em realidade e morram trabalhadores, famílias, comunidades inteiras. Crimes sem punição, mostrados ao vivo pela mídia.

Transmitidos para todo o mundo, os espetáculos de horror das barragens se rompendo e destruindo tudo pelo caminho, lembram por pouco tempo a precariedade da vida dos que habitam os (des)territórios da mineração. À medida em que as imagens se repetem e a impunidade avança, consolida-se a imagem de poder (destruidor) das empresas e da inevitabilidade do modelo de exploração mineral do qual a morte faz parte.

Essa percepção acentua-se à medida que as vítimas desse processo buscam apoio em órgãos de governo, em representantes políticos ou na legislação e descobrem que estão desamparadas. A quem recorrer quando as empresas suspendem ou controlam as leis vigentes, por meio de alianças com políticos[v] e outros atores sociais? Morrem a confiança na representação política e na justiça.

Há aqueles que insistem em questionar as corporações e o modelo de desenvolvimento que elas operacionalizam. O que genericamente chamamos de resistência, mata-se com ameaça, dinheiro, bala, facão e burocracia. No mínimo, criam-se mecanismos legais, em manobras agressivas e imorais[vi], que distorcem a realidade, inviabilizam a manifestação da sociedade civil[vii] e impossibilitam qualquer debate sobre alternativas para o enfrentamento dos problemas que definem a vida nos (des)territórios. Assim, morrem direitos sociais e democracia.

A amplitude e as consequências desse processo avançam pela sociedade, como a lama de rejeitos sobre vales, rios e comunidades. Morremos todos, um pouco, com a natureza destruída, que compartilha socialmente seu desequilíbrio, como mostram estudos científicos. Proliferação de mosquitos e doenças, falta de água potável e alimentos[viii] são tratados como culpa da natureza, enquanto os lucros decorrentes dessas situações são privatizados. Conhecimento e ciência são desprezados.

Afinal, nada deve desviar o planejamento estabelecido pelas empresas. Após os rompimentos das barragens da Samarco, em Mariana, e da Vale, em Brumadinho, as mineradoras não cumpriram compromissos de reparação[ix]. Os municípios nos quais a mineração atua sofrem com a falta de recursos financeiros e a economias desses locais agonizam.

Crime, morte, impunidade. Tudo isso é parte de um planejamento minucioso. Quanto mais impunes permanecem as corporações, mais se consolidam seus poderes. Quanto mais poderosas as empresas, mais crimes cometem e mais lucrativas se tornam. Dados apontam que em menos de um ano após o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, a empresa passou de uma situação de prejuízo para um lucro maior do que no mesmo período do ano anterior[x], ou seja, antes do rompimento da barragem.

Tudo está de acordo com a lógica necrocapitalista. Mas, tudo está absolutamente errado. Simplesmente, esse modelo não serve à vida. E está blindado pela naturalização do próprio modelo e pela naturalização da ausência de alternativas.

Não há esperança nesse horizonte e a narração e compreensão desses fatos nada muda. A maioria da população brasileira não tem nada a perder. Uma minoria, privilegiada, já assustada, observa com precaução. Mas, inevitavelmente, sofreremos as consequências desse modelo que tendem a ocupar espaços, corpos, mentes e territórios. É apenas questão de tempo. Assim, enquanto tenho voz, proponho tornar os verbos ativos, na academia e na vida. Não morrem pessoas. Não morre a natureza. As mineradoras matam pessoas, natureza, história e ativismo, de várias formas, muitas vezes, impunemente. Até agora.

Referências:

[i] BRUM, Eliane. A potência da primeira geração sem esperança. El País, 05 jun. 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/06/05/politica/1559743351_956676.html. Acesso em : 22 jun. 2020.

[ii] BANERJEE, S. B. Necrocaptalism. Organization Studies, v. 29, n. 12, p. 1.541-1.563, 2008.

[iii] SILVEIRA, M. Interface entre saúde e meio ambiente: aspectos da saúde na Avaliação de Impacto Ambiental de empreendimentos. Anais do V Encontro Nacional da Anppas; Florianópolis, p. 4-7, 2010.

[iv] JUCÁ, Beatriz. As 50 barragens em alto risco que mantêm a bomba-relógio da mineração em Minas. El País, 23 jan. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-01-23/as-50-barragens-em-alto-risco-que-mantem-a-bomba-relogio-da-mineracao-em-minas.html. Acesso em: 22 jun. 2020.

[v] MATEUS, Bruno. Mineradoras bancaram 102 deputados eleitos por Minas Gerais em 2014. O tempo, 31 jan. 2019. Disponível em: https://www.otempo.com.br/politica/mineradoras-bancaram-102-deputados-eleitos-por-minas-gerais-em-2014-1.2129410. Acesso em: 22 jun. 2020.

[vi] FERREIRA, Pamella Thaís Magalhães. Análise crítica do discurso de criação da Fundação Renova: a perpetuação dos crimes corporativos.2019. Dissertação (Mestrado em Administração) – Universidade Federal de Lavras. Lavras. 2019.

[vii] GORTÁZAR, Naiara Galarraga. A maldição das minas no Brasil: entre o medo do desemprego e o fantasma da impunidade. El País, 05 maior 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/04/politica/1556925352_146651.html. Acesso em: 22 jun. 2020.

[viii] BRUMADINHO pode ter surto de doenças infecciosas, diz Fiocruz. G1, 05 fev. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2019/02/05/brumadinho-pode-ter-surto-de-doencas-infecciosas-diz-fiocruz.ghtml. Acesso em: 22 jun. 2020.

[ix] Idem item vii.

[x] ARIADNE, Queila; MANSUR, Rafaela. Da lama ao lucro: após um ano da tragédia, Vale já recuperou valor de mercado. O Tempo, 26 jan. 2020. Disponível em: https://www.otempo.com.br/economia/da-lama-ao-lucro-apos-um-ano-da-tragedia-vale-ja-recuperou-valor-de-mercado-1.2288864. Acesso em 22 jun. 2020.

¹Doutora em Ciências Sociais – Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora na Universidade Federal de Lavras (Ufla).

Como citar:
NAVES, Flávia. Morrer muitas vezes nos (des)territórios da mineração. In: Nuevo Blog, 06 jul. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/07/06/morrer-muitas-vezes-nos-desterritorios-da-mineracao/. Acesso em: ??

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