A mentira revelada e a negada

José Henrique de Faria¹

Há muito tempo foram criados cursos de pós-graduação denominados de especialização, seja por instituições privadas ou públicas (essas mais tardiamente). Tratava-se de oferecer o produto pós-graduação no competitivo mercado de titulação. Um mercado com alta demanda, até mesmo porque a certificação era elemento constitutivo da carreira e da remuneração dos profissionais do mercado.

Com o tempo, as instituições mantenedoras desses cursos passaram a oferecer outras modalidades de especialização, sendo a mais valorizada delas os cursos chamados de MBA, que ofereciam a simbólica pretensão de serem cursos de Master Business Administration. Tratava-se de um pseudo-mestrado profissional, valorizado pelo imaginário, que acabou por inspirar essa concepção, posteriormente formalizada com pompas e circunstâncias ao sabor da fantasiosa disputa entre o acadêmico e o profissional.

O MBA, como qualquer programa de especialização, exige um Trabalho de Conclusão de Curso – TCC no lugar de um “artefato”, regulado anos depois pela CAPES, para o mestrado profissional, contemplando diversas possibilidades. Ter um MBA era símbolo de status e ter esse símbolo vinculado a uma instituição simbólica era super valorizado, especialmente no mercado de trabalho gerencial.

As instituições logo constataram que cursos de especialização são mais lucrativos do que os de graduação, pela simples e banal relação entre receitas e despesas, principalmente as despesas com a força de trabalho precarizada e a disposição dos clientes em pagar duas a cinco vezes mais pelo serviço. É, com raríssimas exceções, uma questão mercantil do ponto de vista das instituições, não obstante todo o incansável e repetido discurso da valorização pessoal. Para os docentes desses cursos é um trabalho dedicado, que exige conhecimento e empenho. É, para os alunos, uma formação especializada que contribui para o que se chama de desenvolvimento pessoal. Os cursos são oferecidos em ambiente executivo, com coffee break, pastas e outros utensílios.

Muitos cursos foram vendidos sob essa sigla de MBA, inclusive cursos que não eram voltados à gestão de negócios (MBA em Economia, MBA em Enfermagem, MBA em Psicologia, etc.). A sigla MBA virou símbolo de status nesse concorrido mercado exatamente por ser um diferencial simbólico, pois essencialmente os cursos de especialização e MBA são de um mesmo nível. São as mesmas coisas com diferentes nomes, pois o caráter um tanto metafórico do nome é um diferencial de garantia no mercado imaginário. O valor do simbólico é um fator importante nas estratégias de marketing das instituições que comercializam este produto.

A profusão desses cursos foi de tal ordem, que o próprio MEC decidiu regulamentar sua oferta e as condições de realização. Mais recentemente, foi baixada a Resolução CNE/CES nº 1, de 6 de abril de 2018, que estabelece as diretrizes e normas para a oferta dos cursos de pós-graduação lato sensu denominados cursos de especialização, no âmbito do Sistema Federal de Educação Superior, conforme prevê o Art. 39, § 3º, da Lei nº 9.394/1996. Pós-graduação lato sensu é especialização, inclusive em sua forma estética MBA. Esse tipo de pós-graduação tornou-se um grande negócio e passou a ser oferecido em todo o País. Em princípio de forma presencial. Depois também em forma parcialmente à distância para reduzir custos da instituição ofertante. Atualmente, muitos deles são cursos com base em Ensino à Distância – EAD. Qualidade é antes um mero conceito discursivo do que uma prática.

A característica desses cursos, da perspectiva do trabalho docente, é a ausência de vínculo empregatício formal entre a promotora e o professor, que é contratado por hora-aula ministrada. A remuneração dessa hora-aula é muito superior àquela paga na graduação, o que se torna um atrativo sedutor para os docentes.

Uma das primeiras e mais tradicionais instituições que historicamente oferece esse tipo de curso é uma conhecida Instituição de Ensino Superior – IES fundacional. Recentemente, a relação de trabalho entre essa IES e um seu docente expôs a lógica do negócio. A ênfase nessa IES se deve não à sua particularidade, mas apenas por conta da discussão midiática envolvendo um de seus membros cogitado para um cargo público de Ministro. O que essa IES faz, muitas outras instituições fazem: programas massificados de pós-graduação lato sensu.

A pessoa alvo das críticas, o personagem referência do problema, dava aulas em programas de especialização organizados por essa fundação. O personagem também fez seu mestrado profissional nessa Instituição de Ensino Superior – IES. É um fértil terreno de negócios entre instituições e operadores em que não há inocentes reais.

Convém, à moda fenomênica, abrir um parênteses. Na emergência das discussões, aparece a denúncia de plágio na dissertação do personagem. Dissertação que foi aprovada por uma banca. O certificado de mestre foi oficialmente emitido pela IES. Não há algo de errado nesse processo que não apenas a responsabilidade do mestrando? Se havia plágio, poderia haver titulação? Qualquer banca se sente propensa a aprovar um trabalho relativamente fraco em que se reconhece o esforço do aluno, sugerindo correções e ajustes. Mas nenhuma banca aprova ou deveria aprovar um trabalho com plágio. Se isso acontece é porque o trabalho vai para a banca apesar do plágio. Não há, portanto, uma falha evidente nesse processo? Quantos títulos são assim concedidos? Quantos registros correspondem aos fatos? São questões preocupantes.

Fechando o parênteses e voltando ao tema dos cursos de pós-graduação, é importante indicar que nem todos os que são oferecidos pela IES mencionada estão ligados diretamente aos cursos regulares de suas duas tradicionais e reconhecidas escolas, que possuem um corpo docente altamente qualificado. São projetos da IES, que tem uma estrutura administrativa própria para esse fim. São projetos lucrativos cujas receitas compõem parte importante do seu orçamento. A área encarregada desses programas desenvolve os projetos dos cursos específicos, suas propostas pedagógicas, disciplinas, ementas, créditos, cronogramas de execução e modelos de avaliação. Para viabilizar a realização dos cursos a IES possui convênios com Institutos e Escolas em várias cidades do País, que na prática formam uma rede de instituições conveniadas que utilizam a força simbólica da sigla para vendê-los. As instituições conveniadas são responsáveis não apenas pela venda dos cursos, mas pela divulgação, infraestrutura de apoio (física e institucional), gestão pedagógica, seleção dos alunos, gestão financeira, prestação de contas e contratação dos docentes. A certificação, em muitos cursos, menciona a parceria, embora os estudantes prefiram o status da IES no registro de sua formação. A conveniada paga à IES um percentual do faturamento. Esse é o negócio que está presente em todo o País patrocinado pela IES em questão e por outras diferentes IES, que é realizado por diversas sedes operadoras locais. Produtos com rede de distribuição, como uma espécie de supermercado do ensino, como uma concessão tipo naming rights ou como lojas de franquias.

Esse negócio é praticado inclusive a partir de IES públicas, através de suas fundações, embora sem a mesma estrutura organizacional em rede que possuem as fundacionais, confessionais e outras de direito privado.

O cliente, que é a maneira como são de fato tratados os alunos (embora essa expressão seja discursivamente negada), é seduzido a contribuir, fazendo um “investimento”: essa é a forma mercadológica para atrair o comprador,  indicando a expressão monetária do custo do curso como “investimento” em formação. O valor do curso, por óbvio, inclui todas as remunerações da cadeia produtiva dos serviços educacionais e todos os mimos adicionais.

Uma das regras do modelo de negócio merece destaque: é o valor da hora-aula pago ao docente, que se diferencia pelo seu grau de formação. Embora o valor pago por hora-aula seja mais elevado do que aquele da graduação, não é por isso que produz menos valor excedente. Ter doutorado é importante para determinar o valor da hora-aula, mas igualmente para valorizar o produto. Para comprovar o título basta um certificado, mesmo que não tenha sido validado em uma instituição universitária brasileira de referência. Insistindo: jamais se pode menosprezar o quanto o simbólico é relevante na fetichização da mercadoria.

A inevitável questão: como é formado o corpo docente que consta do catálogo do produto? Quem são essas figuras tituladas e experientes que caracterizam a mercadoria? De que matéria simbólica e objetiva é formado o curso? Todos são docentes com vínculo empregatício com a IES?

Ainda que alguns docentes tenham vínculo empregatício com a instituição, uma parte importante dos resultados desse negócio é exatamente a precarização do trabalho docente. Os docentes recebem por hora-aula em um trabalho geralmente intensivo que é realizado de sexta-feira a sábado à tarde ou domingo pela manhã. Muitos docentes se deslocam para as cidades em que os cursos são oferecidos, o que significa que se está diante de uma equação deslocamento, trabalho, refeição e hospedagem em finais de semana. Para vários docentes a remuneração é um complemento de renda ou uma possibilidade de carreira, já que ou são horistas em alguma IES ou pretendem algum tipo de valorização.

O modelo não contempla contratos efetivos de trabalho. São professores terceirizados que fazem acordos de trabalho intermitentes e flexíveis. Aí emerge a questão que coloca frente a frente a norma e a realidade. Um professor de um curso que não tem vínculo empregatício formal, registrado em sua Carteira de Trabalho, não é professor da instituição que oferece o curso? A IES em questão nega que o personagem referido seja docente de seu quadro efetivo, admitindo que pratica uma relação perversa de exploração do trabalho. Esse fato passa ao largo das discussões, pois todo problema se resume ao fato de o personagem ter mentido no registro de seu Currículo. A mentira do personagem é revelada, mas a da IES é peremptoriamente negada. Professores que trabalham em cursos de pós-graduação não são professores da IES. Se fosse correta essa concepção de que os docentes de seus cursos não têm qualquer relação real com a IES, simplesmente porque lhe é negado um contrato de trabalho, os cursos de pós-graduação não teriam um corpo docente completo para suprir a variedade dos cursos que oferece. Negado o vínculo, no limite, as aulas são ministradas por pessoas jurídicas? Na venda dos cursos o que aparece é o nome do professor ou de seu empreendimento?

A formalidade do vínculo, como se pode observar, é mais relevante que o próprio vínculo. No momento de vender o curso o nome e o currículo do docente são importantes. Mas no momento do reconhecimento prevalece a hipocrisia da gestão e a alegação dos chamados custos trabalhistas. O professor trabalha em um programa de pós-graduação, coloca ali sua energia física e mental, contribui com a formação e principalmente viabiliza o negócio e depois é considerado um eventual colaborador? Por pura formalidade? O personagem não foi correto ao mencionar seu vínculo com a IES? Mas quão honesta foi a IES ao negar o vínculo? A lógica do sistema de capital de exploração do trabalho é inabalável para essas operações. Um professor sem carteira assinada é um trabalhador explorado que não tem qualquer garantia de continuidade de seu trabalho, embora seja exatamente seu trabalho que garanta a oferta e a realização dos cursos. E isso não é um procedimento apenas da pós-graduação. Há professores contratados para simples prestação de serviços de ensino em atividades presenciais ou remotas, para dar palestras que são transmitidas em diferentes cursos à distância, para fazer avaliação de provas de cursos em EAD, para produzir materiais didáticos. Esses procedimentos são desconhecidos ou fazem parte do negacionismo dissimulado? Não se trata de nenhuma novidade esse procedimento de contratação de Pessoa Jurídica – PJ (fenômeno também conhecido como pejotização).

Além do procedimento da IES de contratação terceirizada do docente prestador de serviços, como esse professor se organiza enquanto trabalhador precário? Esse tipo de trabalho de prestação de serviços é tributado pelos municípios e pelo IR pessoa física na fonte. O docente trabalhador, nessas condições, também precisa decidir ou é praticamente obrigado a decidir, entre a alta tributação e a criação de uma empresa (que pode ser um MEI), dando uma nota fiscal por prestação de serviços. Formalmente não existe mais um professor, mas uma pessoa jurídica. Se o problema é o do vínculo, a IES deveria, pelo mesmo critério, considerar que as aulas e outras atividades (orientação de TCC) são ministradas/executadas por pessoas jurídicas. Na divulgação do curso, na lista dos docentes, deveria constar Professor de Responsabilidade Limitada. Docente & Companhia Limitada. O discurso formal faz elogios à expansão do empreendedorismo, quando essa é uma forma de defesa do trabalhador de sua renda. Tem-se aí um docente empreendedor, sem vínculo empregatício, sem contribuição ao FGTS, sem contribuição previdenciária (exceto sua própria). É a forma perversa de uberização da docência, que pode ser também uma espécie de trabalho remoto em um aplicativo para palestras à distância. Uma mesma aula para delivery em diferentes programas. Sem mencionar que esse procedimento também colabora para subdimensionar os índices de desemprego. Há uma harmonia sistêmica no País das Maravilhas.

Evidentemente, nada justifica, nem moral e nem eticamente, o registro inadequado ou falso no Currículo Lattes. O personagem fez um registro falso sobre o doutorado (sem defesa de tese) e sobre o estágio de pós-doutorado (impossível de ter sido feito sem o pré-requisito do doutorado)? Sim. Essa é a questão revelada que é sob todo e qualquer pretexto indesculpável. Mas quem mente é apenas o personagem? Quem paga pessoa jurídica por física não mente? Quem nega o vínculo real com base em um recurso legalista, não mente? Só é mentira o que é revelado? A mentira negada não é mentira? Nada como o império da regra para proteger o exercício do poder. Mas o reino do faz de conta pode ser visto para além das aparências. Basta apenas erguer a ponta do tapete para constatar todo o problema. E quanto mais se ergue mais sujeiras aparecem. Há mais coisas não ditas no que é dito do que pode imaginar a fútil filosofia. Os inocentes moram na caverna de Platão, em que a realidade é a projeção das sombras na parede. Sombras de justiça, sombras de honestidade e ética, sombras de trabalho reconhecido, sombras de formação qualificada. São muitas sombras.

É preciso, além de criticar esse procedimento da mentira do personagem, que não tem qualquer justificativa (convém insistir), considerar que há uma questão da maior gravidade sobre as condições de trabalho de docentes “free lancers”, condições essas que procuram esconder, diante do foco em erros e de negativas de vínculo, a relação de exploração. Uma IES pode negar o vínculo empregatício de um determinado docente, no que está formalmente amparada. Mas não pode negar, nem ela e nem suas conveniadas, que há uma exploração do trabalho docente que produz resultados financeiros importantes para compor sua receita. Resultados que financiam, inclusive, os docentes com vínculo dessa IES que aparentemente criticam esse processo, mas que fazem faceiramente uso deles. Não há escrúpulos na hipocrisia. Há uma exploração que submerge diante do discurso conveniente da oferta de oportunidade de trabalho e do reconhecimento através de emissão de certificados de consolação do tipo “professor homenageado”. A forma é sedutora. Mas, o mundo do trabalho docente não é exatamente essa simbologia idílica e romântica. É trabalho e como tal contém suas contradições entre prazer e sofrimento. É trabalho submetido à lógica da acumulação ampliada do capital.

O que uma IES faz, fazem também as outras IES, sejam fundacionais, sejam públicas (através de suas fundações), sejam confessionais ou privadas. Todas que hoje desejam tirar suas veias de sangue doce da seringa crítica. Há um descompromisso desejoso de inocência.

O personagem alvo deve ser criticado por sua atitude irresponsável, mas ele nem é o único que tem essa prática e nem o único responsável por essa prática. A mania de simplificar as análises sempre termina na superfície fenomênica. Mergulhar no fenômeno é o que faz a diferença entre epistemologia e doxa, já argumentava Sócrates. A realidade está aí, tanto para os pesquisadores como para os ideólogos, com a diferença de que esses últimos podem fazer uso da mentira e negar que o tenham feito.

¹Doutor em Administração pela Universidade de São Paulo- FEA/USP e Pós-Doutor em Labor Relations pelo Institute of Labor and Industrial RelationsILIR – University of Michigan. Professor Titular Sênior da Universidade Federal do Paraná (UFPR) no Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGADM) e Professor Visitante da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) no Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGA).

Como citar
FARIA, José Henrique de. A mentira revelada e a negada. In: Nuevo Blog, 07 Jul. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/07/07/a-mentira-revelada-e-a-negada/. Acesso em: ??

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